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Testamento

“Testamento” vem da palavra latina para “testemunha”, testis, cujo radical provavelmente derivou de tristis, que significa “terceira pessoa”. Isso porque era comum o pensamento, na Idade Antiga, de que um número de três pessoas seria suficiente para fornecer uma denúncia verossímil que possibilitasse a condenação de alguém. Até na Lei Mosaica (em Dt 17:6, por exemplo) encontramos essa informação.


Como deu para perceber, o processo de formação da palavra “testamento” não é complexo de se entender. No entanto, os motivos de seu uso bíblico são um pouco confusos, e talvez até por isso sejam raramente comentados. Entenda por “uso bíblico” a denominação da grande divisão que é feita entre os livros da Bíblia, a saber, a divisão entre Antigo e Novo Testamento. De fato, é raro encontrar alguém que explique o porquê do uso da palavra “testamento” nessas expressões, apesar de, pelo menos em minha opinião, ser muito interessante saber dos bastidores que fizeram colocar esse termo em exercício. O objetivo deste artigo é justamente esse: compartilhar com você essas explicações.

Então vamos lá. As expressões “Antigo” e “Novo Testamento” surgiram por volta do século II d.C., quando a Igreja começou a montar o cânon dessa segunda parte da Bíblia, ou seja, quando começaram a elaborar a lista dos 27 livros sagrados do NT como o conhecemos. Quem primeiro as usou foi Tertuliano, um dos pais da Igreja, que viveu no cristianismo primitivo daquela época. Vamos parar um pouco aqui. Antes de continuar, acho melhor esclarecer algumas coisas. Você sabe o que significa “testamento”?

Bem, para essa palavra o dicionário Aulete traz a seguinte definição: “Declaração escrita e autêntica em que uma pessoa descreve e consigna as suas últimas vontades, dispondo de todos ou em parte de seus bens”. Trocando em miúdos, podemos dizer que um testamento é uma carta devidamente amparada pela lei que expressa aquilo que uma pessoa quer que se faça com seus direitos quando ela morrer.

Você já deve ter percebido que em nosso ordenamento jurídico e em nossa cultura o direito de propriedade é o mais privilegiado e alardeado. No ordenamento bíblico, contudo, as coisas são bem diferentes. Isso porque, aqui, Deus é quem é a lei. Ele é quem manda, e nada o limita. Uma vez que Jesus é Deus e, portanto, nada lhe é limitado, um testamento elaborado por ele trata-se de um documento onde está registrado tudo – já que todas as coisas lhe são de direito – que ele quer que aconteça após a sua morte. Ora, não é exatamente isso de que se trata o Novo Testamento? É um documento devidamente elaborado (inspirado) por Deus relatando tudo o que deve acontecer e ser feito após sua morte, na pessoa de Jesus Cristo.

Essa explicação pode não convencer – e de fato não convence em alguns aspectos. Vejamos bem: os Evangelhos e os Atos não passam, em grande parte, de relatos histórico-biográficos e, portanto, têm pouca ou quase nenhuma manifestação da vontade de Deus para o futuro. Há, além deste, outro problema. Como fica o Antigo Testamento? Quem foi o testador dele? Quem morreu para que ele tivesse validade?

Bem, em primeiro lugar (e já resolvemos a primeira crítica), essas ressalvas seriam muito mais incômodas se levássemos essa história de dar nome às divisões da Bíblia à risca. Quer dizer, o nome de suas seções não tem tanta importância assim. O que importa mesmo é saber que a divisão existe, ou seja, é saber que de Gênesis a Malaquias temos uma coisa e de Mateus a Apocalipse temos outra. Devemos nos preocupar menos com os rótulos (como os títulos ou a ordem dos livros, por exemplo) da Bíblia do que com seu conteúdo.

De qualquer modo, realmente há uma alternativa melhor que a tradicional nomeação de Tertuliano em “testamentos”: a divisão em alianças. Mas por quê? Bem, em primeiro lugar, porque esse termo é, na maioria das ocasiões, uma tradução mais adequada que “testamento” ao termo grego diatheke, encontrado em algumas passagens do NT (como IICo 3:6,14). Em segundo lugar, porque é assim que Deus chama o novo convênio que ele faria com o homem através do advento de Cristo (Jr 31:31; Ez 16:60). Por fim, um bom motivo para preferir “aliança” a “testamento” é que a primeira parece definir melhor os pactos entre Deus e o homem do que a segunda. O ser humano é peça essencial aos planos do Senhor; nós somos o objeto do amor dEle. Faz mais sentido, portanto, pensar em um acordo, que é um ato bilateral, como expressa a palavra “aliança”, do que em uma imposição fria e mesquinha como sugere “testamento”, um ato unilateral, que poderia nos deixar à mercê do mundo – algo que Ele jamais faria. Não nos esqueçamos de que Jesus prometeu que estaria conosco até a consumação dos séculos (Mt 28:20).

Já no que toca àquela segunda ressalva que apresentamos acima, podemos dizer que ela não procede. O seguinte texto do livro de Hebreus nos conta com detalhes quem foi que morreu para trazer validade à primeira aliança ou testamento:

Porque, onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do testador; pois um testamento só é confirmado no caso de mortos; visto que de maneira nenhuma tem força de lei enquanto vive o testador. Pelo que nem a primeira aliança foi sancionada sem sangue; porque, havendo Moisés proclamado todos os mandamentos segundo a lei a todo o povo, tomou o sangue dos bezerros e dos bodes, com água, e lã tinta de escarlate, e hissopo e aspergiu não só o próprio livro, como também sobre todo o povo” (9:16-19).

A conclusão que tiramos disso tudo é que Deus é fiel, piedoso e bom. Chame você os planos do Senhor de aliança ou testamento, o que vale é que Ele se importa suficientemente o bastante conosco para criar formas de salvar sua criatura da perdição eterna. O meio para isso no atual testamento se encontra em seu Filho, Jesus. Como ele mesmo disse:

Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim (...). Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14:1,6).